SOU DO CEARÁ


"Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas não esmorece e procura vencer.
Da terra querida, que a linda cabocla
De riso na boca zomba no sofrer
Não nego meu sangue, não nego meu nome
Olho para a fome , pergunto o que há ?
Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,
Sou cabra da Peste, sou do Ceará."

Patativa do Assaré

domingo, 22 de maio de 2011

CULTURA X EVOLUÇÃO OU DESENVOLVIMENTO

BATISTA DE LIMA  -  PROFESSOR, POETA  E  ESCRITOR
DA ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS



" Mudança de hábito "

                            
                                     Por BATISTA DE LIMA


" Houve um tempo em que viajávamos por essas estradas que cortam nosso Ceará e nos deleitávamos, no inverno, com milharais pendoados, arrozais virando o cacho, roçados amarelos de feijão maduro e canaviais de pendões balouçantes. Onde se chegava, havia fartura de milho assado e cozido, canjica, pamonha e feijão verde. Era um orgulho para o agricultor servir o produto da terra, fruto do seu suor para regalo do visitante. Isso tudo sem contar com a galinha à cabidela cujo cheiro invadia os compartimentos da casa e enchia a boca d´água antes da refeição.

Hoje o agricultor tornou-se pecuarista. Suas antigas roças de legumes hoje são plantios de pastos. Seu rádio de pilha virou aparelho de televisão com antena parabólica. Enquanto as vacas pastam, ele engole imagens coloridas de um mundo que não é seu. Aposentaram-se a enxada, o machado, a foice, a roçadeira, o martelo e a pedra de amolar. A cerca de vara agora é de arame farpado. Os peixes são de cativeiro, sem direito à imensidão das águas. A espiga de milho verde vem murcha em caminhões de outras terras, e não mais existe no roçado da frente da casa. A melancia que vingava ao pé da cerca agora vem de carreta e chega com escoriações de lonjuras.

Uma outra mudança bem característica está na vestimenta. O chapéu de palha ou de couro se tornou boné de marca. A camisa de mescla para enfrentar o juremal agora é camiseta com letreiros em inglês. A calça também de mescla ou cáqui virou bermuda que só veste até o joelho. A alpercata deu lugar ao tênis, o chinelo de couro deu lugar à japonesa. O gado vem tangido pelo motoqueiro, que futuramente, devidamente motorizado, derrubará bois nas vaquejadas. O leite é lançado em tanques resfriadores antes de viajar em caminhões transportadores para engorda do povo da capital. Algum tempo depois, volta comportado em iogurtes ou latas de leite em pó pelo dobro do preço pago in natura.

A mudança também é grande quando se olha a paisagem que agora se debruça até onde alcança a vista. Todas as árvores nativas, até as de grande porte, são arrancadas da terra e protestam com suas raízes voltadas para o céu. O capim toma conta do mundo, a terra fica lambida como cachorro de muito pelo depois de tosquiado. Quando a chuva um dia chega, leva consigo a vitamina que engorda a pele da terra. Leva os restos dessa pele que vão entupir os rios, pois as árvores ribeirinhas também não existem mais. Uma terra sem floresta não retém água de chuva, que leva consigo a vida de que nosso existir precisa. O deserto que então se cria vai virar doença crônica.

A doença que ataca a terra e depois contamina a água é fruto do olho grande dos proprietários. A natureza entretanto não deixa de se vingar. São enchentes sem controle, temperatura subindo, terremotos, tsunamis, animais em extinção. Aquela água que vinha, retirada da cacimba, trazia gosto de terra, tinha tanta vitamina que mesmo estando com fome a gente se alimentava. Hoje a água que se bebe já foi bebida pelo plástico e o pote de água dormida foi quebrado no monturo. Aquele pote e a quartinha, também a cabaça de colo eram lágrimas suspensas do olho triste de um mundo que se partia de vez, numa viagem sem volta.

Quem também andou mudando foi o ferro de ferrar boi, pois o garrote mal apartado já recebe um chip nos couros como sua identidade. A creolina de curar bicheira vem em forma de spray. Cada ferida, que se trata, aumenta a pereba do céu na camada de ozônio. Por isso que as chuvas chegam sem qualquer aviso prévio, arrancam as terras da serra para entupir os riachos e alagarem cidades.

Outra coisa que mudou foi o serviço de parto, pois a mulher quando sente que o menino quer ver luz é levada ao hospital, vai parir sem sentir dor, e no outro dia já desfila como se mocinha fosse. Aqueles capões gordos, para os dias de resguardo, em vez de sair do chiqueiro, são guardados no freezer sem dizer a sua origem. A mulher pouco amamenta com medo de flacidez, o homem pouco comenta a grandeza de ser pai, e o menino mal se mexe é jogado numa creche sem saber o que é afeto.

O menino antigo crescia debaixo da ordem do pai, vivendo os carinhos da mãe, em forma de cafuné e só depois de adulto saía de casa e partia em busca de seus estudos ou de conhecer o mundo. Hoje mesmo estando em casa, o mundo já vem debruçado nos aparelhos em cores que dão ordens às gentes. Ele cresce e jamais sabe o que é um convescote, uma fianga, um prospecto, um tear, mocororó e tiborna. Um corrimboque e uma cupira, um cabograma e um reclame, também espinhela caída e caboge são coisas que estão guardadas em baús trancafiados na memória dos mais velhos. Frasqueira agora é pochete, tertúlia virou balada, ceroula reduziu-se a sunga, pé-de-meia virou poupança. O hábito de assistir missas com celebrante de costas, resmungando latim clássico, mudou para celebração onde o fiel também consegue ingressar no ritual e aposentou para sempre o velho confessionário.

Essas mudanças de hábito são mudanças destes tempos, coisas que no presente atropelam aquilo que no passado vingou. O equívoco que se cria, diante dessa questão, é decorrente da morte que impomos ao passado como se a tradição não pudesse conviver abraçada com essa modernidade. Por isso que aquele coreto que foi derrubado na praça no dia em que virou entulho nossos avós também se foram na caçamba transportadora para um novo enterro no aterro sanitário. Lá também se sepultaram os casarões dos mais antigos, aquele costume antigo de respeitar os mais velhos e o hábito de apertar botões sem tirar os pés do chão."

 
BATISTA DE LIMA
 
FONTE:  DIÁRIO DO NORDESTE
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=982141
 

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