" Fora do piloto automático "
" O escritor paulista João Silvério Trevisan, 67, esteve em Fortaleza semana passada para participar da mostra Curta o Gênero - que terminou no último dia 11, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - e aproveitou para relançar na cidade Rei do Cheiro, seu último livro, publicado em 2009. Em entrevista a O POVO, ele falou sobre o que considera “o piloto automático” da cobertura jornalística e da crítica literária no Brasil, reclamou do isolamento em que se sente posto e revelou que deve se dedicar ao cinema nos próximos anos.
O POVO - Você relançou em Fortaleza o Rei do Cheiro, que é de 2009. O livro ainda está repercutindo?
João Silvério Trevisan - Você faz uma pergunta que me coloca contra a parede, porque, se eu for sincero, e eu vou ser, vou fazer um pouco de antipropaganda. Eu não tenho direito de fazer isso com meu livro, mas eu preciso dizer que ele foi um fracasso.
OP - De vendas?
João Silvério - Um fracasso de vendas e um fracasso de crítica, mesmo porque meus quatro últimos livros sofreram um silêncio absurdo por parte da grande imprensa. É uma coisa que me aflige muitíssimo, porque eu não consigo saber os motivos, ou seja, é como se eu não existisse, como se a minha obra não existisse. Sai às vezes coisinhas de favor, notinhas, mas é como se não interessasse a eles. Não faz o menor sentido pra crítica e pros jornalistas. Com relação ao público, não é nenhuma novidade que o livro não vende, porque os meus outros livros também não vendem. Os dois que mais vendem são Ana em Veneza (1994) e Devassos no Paraíso (1986) e mesmo assim em quantia insignificante. Mas o problema do Rei do Cheiro é que nele eu me empenhei de todas as maneiras, eu corri muitos riscos, inclusive do ponto de vista técnico.
OP - Que riscos?
João Silvério - Eu tenho a impressão que a literatura, não só brasileira, mas internacional, deu uma regredida pro século XIX que me incomoda muito. Quando eu ouço dizer que um cara escreve tão bem quanto Machado de Assis, eu fico chocado. Tudo bem, Machado de Assis é um grande escritor, agora qual é o sentido de fazer essa comparação cem anos depois. Quer dizer, não aconteceu nada nesses cem anos, não aconteceram escritores, não se descobriu nada? Nós tivemos um período no começo do século XX que foi uma revolução estética em todas as artes, inclusive na literatura, um período que virou do avesso tudo que nós tínhamos de literatura do século XIX relacionada com o realismo. Eu não sei se isso é uma questão de mercado, mas isso tá voltando com tudo e eu não queria trabalhar com um narrador onisciente e neutro.
OP - Praticamente não se encontra esse narrador em Rei do Cheiro.
João Silvério - Eu eliminei, provavelmente só na epígrafe é que você pode sentir a presença de uma narrador onisciente. A minha questão era a seguinte: como vou contar a história de mais de meio século do País. Em 60 anos de história, houve uma quantidade espantosa de vozes e de vozes novas em muitas áreas. Nós tivemos, por exemplo, toda a cultura de massa emergindo a partir da década de 1950. A minha preocupação era dar voz a isso tudo, agora eu queria uma voz polifônica, um coral polifônico e não alguém controlando com seus fios, ainda que invisíveis, essa expressão polifônica. Então, eu começo com um programa de rádio e vou introduzindo anúncios, vou introduzindo letras de músicas, trechos de novelas de rádios... Então eu corri um puta de um risco e não tive a menor ressonância, ninguém, ninguém, ninguém, mencionou todo meu esforço em criar essa polifonia.
OP - Mas o livro ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), que é um prêmio de destaque.
João Silvério - Pois é, eu pensei que dava destaque. Mas eu ganhei o único prêmio que não dava dinheiro. Eu tive que vender a minha garagem pra escrever o romance. Quando aconteceu o mensalão e o PCC estourou, eu disse: “Agora eu vou abandonar tudo!”. Abandonei outro projeto e fui pras ruas, tomei notas dos ataques do PCC enquanto estavam acontecendo, praticamente escrevi aquele capítulo nas ruas. O prêmio APCA, por exemplo, é o único prêmio sem dinheiro. Nos outros todos eu nem fiquei entre os finalistas. Ou seja, eu não estava nem entre os dez melhores do ano e eu fiquei muito preocupado porque acho que a literatura brasileira e a crítica andam um pouco no piloto automático e nada do que esteja fora do piloto automático pode interessar. Eu acho que o mercado conformou um formato literário e está todo mundo perseguindo esse formato.
OP - Para onde segue esse piloto automático? O Rei do Cheiro, por exemplo, foi publicado pela Record, que é uma das maiores do mercado.João Silvério - Eu publiquei outros livros pela Record. Esse ficou um ano nas gavetas, isso prejudicou muito, porque o meu livro deveria ter saído no auge. Havia um vulcão e eu estava no meio do vulcão. Quando ele saiu, o Lula já tinha dado a volta por cima e os brasileiros estavam felizes comprando suas televisões, seus carros à prestação, suas geladeiras, seus micro-ondas, seus fogões, e o meu livro é muito pessimista. Não que ele tenha se tornado desatualizado, mas já não havia ouvidos para meu grito quando ele saiu em 2009. E não significa que os problemas tenham sido solucionados. Nós sabemos que as prisões brasileiras são vulcões que a qualquer momento podem explodir. A questão toda é que papel você ocupa na sociedade brasileira se você não quer andar no piloto automático.
OP - E a sua literatura hoje anda por onde?
João Silvério - Em lugar nenhum, eu não estou escrevendo, eu preciso dar um tempo. Eu tenho trocentos projetos, não apenas na área literária, na área de cinema e de teatro também, mas eu preciso trabalhar. No caso do Rei do Cheiro, eu parei oito meses porque vendi minha garagem, foi a bolsa que eu me dei. Agora eu dei uma parada, estou esperando as coisas assentarem na minha cabeça e na minha alma, ajudado por antidepressivos naturalmente, e estou me voltando pro cinema. Eu estou tentando resgatar minha carreira de cineasta que foi atropelada lá na década de 70 pela censura.
OP - Seu longa Orgia, o homem que deu cria nunca chegou a ser lançado nos cinemas...João Silvério - Meu longa nunca foi terminado, nunca teve a primeira cópia, então eu não sei como é a fotografia. Ele nunca foi lançado comercialmente e agora (em janeiro), depois de 41 anos, eu tive a estreia nacional e internacional no Festival Internacional de Rotterdã, dentro da mostra do cinema da Boca do Lixo, e foi pra mim muito tocante, porque o cara que veio conversar comigo, o curador, disse: “João, o teu filme é absolutamente admirável”. Esse cara dá aula na Universidade de Chicago. Como é que ele ficou sabendo do meu filme? Então eu comecei a pensar que tem gente que está preocupada com o que eu estou fazendo. Eu não estou querendo minimizar meu trabalho, eu estou preocupado com a minha comunicação com o meu tempo que parece que está sendo podada. Eu me sinto um banido. Então, voltei de Rotterdã com a corda toda."
320 páginas
R$ 47,90
O POVO - Você relançou em Fortaleza o Rei do Cheiro, que é de 2009. O livro ainda está repercutindo?
João Silvério Trevisan - Você faz uma pergunta que me coloca contra a parede, porque, se eu for sincero, e eu vou ser, vou fazer um pouco de antipropaganda. Eu não tenho direito de fazer isso com meu livro, mas eu preciso dizer que ele foi um fracasso.
OP - De vendas?
João Silvério - Um fracasso de vendas e um fracasso de crítica, mesmo porque meus quatro últimos livros sofreram um silêncio absurdo por parte da grande imprensa. É uma coisa que me aflige muitíssimo, porque eu não consigo saber os motivos, ou seja, é como se eu não existisse, como se a minha obra não existisse. Sai às vezes coisinhas de favor, notinhas, mas é como se não interessasse a eles. Não faz o menor sentido pra crítica e pros jornalistas. Com relação ao público, não é nenhuma novidade que o livro não vende, porque os meus outros livros também não vendem. Os dois que mais vendem são Ana em Veneza (1994) e Devassos no Paraíso (1986) e mesmo assim em quantia insignificante. Mas o problema do Rei do Cheiro é que nele eu me empenhei de todas as maneiras, eu corri muitos riscos, inclusive do ponto de vista técnico.
OP - Que riscos?
João Silvério - Eu tenho a impressão que a literatura, não só brasileira, mas internacional, deu uma regredida pro século XIX que me incomoda muito. Quando eu ouço dizer que um cara escreve tão bem quanto Machado de Assis, eu fico chocado. Tudo bem, Machado de Assis é um grande escritor, agora qual é o sentido de fazer essa comparação cem anos depois. Quer dizer, não aconteceu nada nesses cem anos, não aconteceram escritores, não se descobriu nada? Nós tivemos um período no começo do século XX que foi uma revolução estética em todas as artes, inclusive na literatura, um período que virou do avesso tudo que nós tínhamos de literatura do século XIX relacionada com o realismo. Eu não sei se isso é uma questão de mercado, mas isso tá voltando com tudo e eu não queria trabalhar com um narrador onisciente e neutro.
OP - Praticamente não se encontra esse narrador em Rei do Cheiro.
João Silvério - Eu eliminei, provavelmente só na epígrafe é que você pode sentir a presença de uma narrador onisciente. A minha questão era a seguinte: como vou contar a história de mais de meio século do País. Em 60 anos de história, houve uma quantidade espantosa de vozes e de vozes novas em muitas áreas. Nós tivemos, por exemplo, toda a cultura de massa emergindo a partir da década de 1950. A minha preocupação era dar voz a isso tudo, agora eu queria uma voz polifônica, um coral polifônico e não alguém controlando com seus fios, ainda que invisíveis, essa expressão polifônica. Então, eu começo com um programa de rádio e vou introduzindo anúncios, vou introduzindo letras de músicas, trechos de novelas de rádios... Então eu corri um puta de um risco e não tive a menor ressonância, ninguém, ninguém, ninguém, mencionou todo meu esforço em criar essa polifonia.
OP - Mas o livro ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), que é um prêmio de destaque.
João Silvério - Pois é, eu pensei que dava destaque. Mas eu ganhei o único prêmio que não dava dinheiro. Eu tive que vender a minha garagem pra escrever o romance. Quando aconteceu o mensalão e o PCC estourou, eu disse: “Agora eu vou abandonar tudo!”. Abandonei outro projeto e fui pras ruas, tomei notas dos ataques do PCC enquanto estavam acontecendo, praticamente escrevi aquele capítulo nas ruas. O prêmio APCA, por exemplo, é o único prêmio sem dinheiro. Nos outros todos eu nem fiquei entre os finalistas. Ou seja, eu não estava nem entre os dez melhores do ano e eu fiquei muito preocupado porque acho que a literatura brasileira e a crítica andam um pouco no piloto automático e nada do que esteja fora do piloto automático pode interessar. Eu acho que o mercado conformou um formato literário e está todo mundo perseguindo esse formato.
OP - Para onde segue esse piloto automático? O Rei do Cheiro, por exemplo, foi publicado pela Record, que é uma das maiores do mercado.João Silvério - Eu publiquei outros livros pela Record. Esse ficou um ano nas gavetas, isso prejudicou muito, porque o meu livro deveria ter saído no auge. Havia um vulcão e eu estava no meio do vulcão. Quando ele saiu, o Lula já tinha dado a volta por cima e os brasileiros estavam felizes comprando suas televisões, seus carros à prestação, suas geladeiras, seus micro-ondas, seus fogões, e o meu livro é muito pessimista. Não que ele tenha se tornado desatualizado, mas já não havia ouvidos para meu grito quando ele saiu em 2009. E não significa que os problemas tenham sido solucionados. Nós sabemos que as prisões brasileiras são vulcões que a qualquer momento podem explodir. A questão toda é que papel você ocupa na sociedade brasileira se você não quer andar no piloto automático.
OP - E a sua literatura hoje anda por onde?
João Silvério - Em lugar nenhum, eu não estou escrevendo, eu preciso dar um tempo. Eu tenho trocentos projetos, não apenas na área literária, na área de cinema e de teatro também, mas eu preciso trabalhar. No caso do Rei do Cheiro, eu parei oito meses porque vendi minha garagem, foi a bolsa que eu me dei. Agora eu dei uma parada, estou esperando as coisas assentarem na minha cabeça e na minha alma, ajudado por antidepressivos naturalmente, e estou me voltando pro cinema. Eu estou tentando resgatar minha carreira de cineasta que foi atropelada lá na década de 70 pela censura.
OP - Seu longa Orgia, o homem que deu cria nunca chegou a ser lançado nos cinemas...João Silvério - Meu longa nunca foi terminado, nunca teve a primeira cópia, então eu não sei como é a fotografia. Ele nunca foi lançado comercialmente e agora (em janeiro), depois de 41 anos, eu tive a estreia nacional e internacional no Festival Internacional de Rotterdã, dentro da mostra do cinema da Boca do Lixo, e foi pra mim muito tocante, porque o cara que veio conversar comigo, o curador, disse: “João, o teu filme é absolutamente admirável”. Esse cara dá aula na Universidade de Chicago. Como é que ele ficou sabendo do meu filme? Então eu comecei a pensar que tem gente que está preocupada com o que eu estou fazendo. Eu não estou querendo minimizar meu trabalho, eu estou preocupado com a minha comunicação com o meu tempo que parece que está sendo podada. Eu me sinto um banido. Então, voltei de Rotterdã com a corda toda."
Serviço
Rei do Cheiro, de João Silvério Trevisan
Record320 páginas
R$ 47,90
Pedro Rocha pedrorocha@opovo.com.br
FONTE: JORNAL O POVO
http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2012/03/19/noticiasjornalvidaearte,2803768/fora-do-piloto-automatico.shtml
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