CAPA DO LIVRO " O LICEU DO MEU TEMPO VOL. 01 "
EDITADO PARA COMEMORAR OS 160 ANOS
DE FUNDAÇÃO DO NOSSO LICEU DO CEARÁ
" O LICEU DO MEU TEMPO VOL. 02 "
MARCOU O ANIVERSÁRIO
DE 162 ANOS
" O meu Liceu "
Ensaio publicado no livro O Liceu do Meu tempo - Vol. 2,
organizado pelo professor Auriberto Vidal Cavalcante.
" O Liceu não foi para mim a escola risonha e franca do poeta. Foi sim a
oportunidade para conhecer de perto as assimetrias econômicas e
culturais da nossa sociedade. Saído de um colégio pequeno, particular, o
“Ginásio Farias Brito”, dirigido por amigos de família, os professores
Ari de Sá Cavalcante e João César, estava protegido dos impactos que só o
convívio com pessoas de diferentes camadas sociais revela. Decidido que
iria cursar o científico lá – como se chamava o ciclo de três anos que
encerrava o secundário – tive que me submeter à um exame de seleção para
disputar uma das vagas remanescentes oferecidas à estudantes oriundos
de outros estabelecimentos de ensino. Lembro com que apreensão galguei
as escadarias da porta principal, defronte à Praça Fernandes Vieira,
primeiro para me submeter às provas, e depois, aprovado, matricular-me e
iniciar as aulas. Tudo era novo e diferente. Colegas, professores,
disciplina, relacionamento com funcionários. Sentia-me desprotegido e
com a sensação de que a partir daí tudo iria depender de mim, do meu
esforço e desempenho. A segurança dos pais e a atmosfera familiar do
antigo colégio, ficara para trás. O espaço público onde acabara de
ingressar a todos nivelava, e foi essa constatação que inicialmente me
assustou. Começava ali minha descoberta do mundo. Iniciava o aprendizado
de suas belezas e misérias.
LICEU DO CEARÁ - ANTES DA AMPLIAÇÃO
FOTO DA DÉCADA DE 30
Indicaram-me o alfaiate especialista na confecção da farda de cáqui,
túnica com botões negros com a efígie do colégio, calça, e uma boina
azul. Nunca esqueci seu nome, Miririco, baixinho e hábil no mister de
coser uniformes. Com ela frequentei os dois anos do turno da manhã,
suando em bica no percurso feito a pé, do colégio até minha casa, sita à
Avenida Bezerra de Menezes, vizinho ao quartel do CPOR, na companhia
alegre de colegas, entre os quais ressalto a figura bondosa do José
Tarcísio Sindeaux Gurgel, amizade querida, conservada até sua morte.
ALUNOS NO PÁTIO DO LICEU
Na sala de aula éramos alunos de várias procedências. Muitos,
vindos do interior, hospedados em casas de parentes, na Casa do
Estudante, ou em pensões precárias, enfrentando enormes dificuldades.
Alguns, de Fortaleza, filhos de famílias modestas. Uns poucos, como eu,
membros da classe média que buscavam o Liceu pela qualidade do ensino. A
primeira dificuldade a superar era a da integração com os colegas, sem
deixar-me isolar, por preconceito ou desconfiança. Nisso fui bem
sucedido. Gozei da estima de todos e fiz ali amizades que ainda hoje
perduram. Essa primeira lição aprendida me acompanhou pelo resto da
vida, e foi a meu juízo fator decisivo para o êxito profissional e
político que alcançaria mais tarde. E isso foi o mais importante. Não
sei bem o que aprendi, mas lembro com quem aprendi. Em primeiro lugar
com os outros alunos, com seu testemunho de vida, particularmente os
colegas do turno da noite, para o qual me transferi no terceiro ano
científico afim de ter mais tempo de me preparar para o vestibular de
medicina. Estudante profissional, assim chamados os que como eu não
precisavam trabalhar para manterem-se, convivia com muitos, que bêbados
de sono assistiam as aulas, vindos diretamente de quartéis, escritórios,
estabelecimento comerciais, e repartições públicas.
SINO QUE AINDA HOJE " CONTROLA "
O TEMPO E INDICA
O INÍCIO E O FIM DE CADA AULA.
Comovia-me o esforço deles, levando-me a refletir sobre a
desigualdade de nossas condições materiais. Essa, a segunda lição que
estava aprendendo sutilmente, sem precisar dos compêndios sobre as
teorias sociais e a divisão de classes. As conversas animadas no
intervalo das aulas, as discussões sobre os fatos do momento, e até
altercações rápidas atiçadas pela política partidária, enchiam nossas
horas livres. Não raro, a algazarra se estendia até a praça, terminando
na leiteria situada na esquina da Rua Guilherme Rocha, onde nos
servíamos de uma coalhada de cujo sabor até hoje me recordo.
PROF. BOANERGES SABÓIA (COM DONA EDITE, SUA ESPOSA.
Dos professores guardo imagens inesquecíveis bem como dos ensinamentos
que armazenei, desafiado pela necessidade de superar deficiências
pessoais e aprender que sem estudo não havia como vencer os obstáculos
que teria pela frente. Quanto de português aprendi nas aulas caóticas,
pela galhofa dos jovens, mas cheias de conteúdo, do professor Boanerges
Luz? Ou nas lições do mestre Martins de Aguiar, às vésperas da
aposentadoria, envergando terno branco com uma imagem de Nossa Senhora
na lapela? Linguagem desabrida e disciplinadora, impunha respeito e
metia medo à turma. O que ficou da língua francesa ensinada pelo
professor Tupá com base no “Manuel de Français” de Henri de Lanteuil, e
que se apresentou no primeiro dia de aula explicando a origem do seu
nome? Não esqueço a fisionomia bondosa de Waldemar Barros, com óculos
enormes, esforçando-se para nos ensinar o inglês, e que a irreverência
dos alunos apelidava às escondidas de “how many”. Quanta eficiência e
disciplina imprimiu ao seu magistério Rebouças Macambira, ao ponto de
dar-me em um único ano, com base no “Manual de Espanhol”, de Idel
Becker, o preparo para no futuro ler e entender a língua de Cervantes.
Ou de como me ajudaram a vencer dificuldades com a matemática o método
rigoroso e exigente do Professor Jaborandi e a figura amena do Manuel
Cavalcante. Tudo a partir de um livro sisudo, de lombada roxa, conhecido
como “Os Quatro Autores”. Tenho vivo na memória as figuras de Praciano e
Sobreira a ensinarem desenho, carregando réguas, esquadros, e compassos
enormes, que quase requeriam um auxiliar para transportá-los. E as
lições de história de Fernando Maia, que ficaram na lembraça pelo vigor
cênico com que narrava as batalhas da segunda guerra mundial. As
fórmulas químicas do Rouquayrol, ensinadas com rigor e austeridade, eram
uma espécie de transição entre antigos e novos modos docentes. Não há
como deixar de falar em Ademar Batista, que parecia carregar o Liceu no
peito tal seu amor pelo colégio. Bem assim, de Boanerges Sabóia, figura
indissociável da escola que dirigiu por muitos anos. Não dá, no reduzido
espaço de que disponho, para falar de todos. Mas de cada um guardo uma
recordação feliz, e a gratidão por terem me ensinado à sua maneira a
descobrir os caminhos do mundo.
ALUNOS DO LICEU EM DEFESA DA DEMOCRACIA
Ainda
é preciso lembrar duas figuras que marcaram o Liceu do meu tempo, – o
“seu Néon”, o bedel que zelava pela disciplina, cujo filho era nosso
colega, e a Dona Maria, esposa do Pierre Lima, que ensinava Ciências e
depois foi vereador em Fortaleza. Na secretaria do colégio ela nos
atendia paciente, informando a todos as notas dos exames com uma atenção
a ser imitada por todo servidor público.
Bons tempos aqueles em que ser aluno ou professor no Liceu, era motivo
de destaque e orgulho, e dirigi-lo posto muito disputado. O ensino tinha
bom nível, mas as vagas disponíveis eram muito limitadas e o acesso
restrito. A escola pública expandiu-se e ficou mais democrática, mas o
ensino deteriorou-se. A lição do Liceu que frequentei não é a do
saudosismo imobilizador, mas a da alta valia da educação pública para os
jovens e o País.
O possessivo do título se explica por ter sido esse o Liceu que vi, no
meu tempo e nas minhas circunstancias, como cada um tê-lo-á vivido ao
seu modo. Daí poder dizer-se, a partir de tantos pontos de vista
distintos, Liceu, Liceus. Adoráveis recordações da juventude que passou,
sem passar. "
FONTE: BLOG DO LÚCIO ALCÂNTARA
http://lucioalc.blogspot.com/2007/10/o-meu-liceu.html