SOU DO CEARÁ


"Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas não esmorece e procura vencer.
Da terra querida, que a linda cabocla
De riso na boca zomba no sofrer
Não nego meu sangue, não nego meu nome
Olho para a fome , pergunto o que há ?
Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,
Sou cabra da Peste, sou do Ceará."

Patativa do Assaré

sexta-feira, 24 de julho de 2009

GILBERTO FREIRE É O AUTOR MAIS INFLUENTE DO BRASIL



GILBERTO FREIRE É O AUTOR MAIS INFLUENTE DO BRASIL
Freyre, Euclides e o Brasil
por Daniel Piza, Seção: livros 08:21:09.


" Gilberto Freyre é o autor mais influente do Brasil. Suas ideias se veem em muitos dos romancistas brasileiros (José Lins do Rego, Jorge Amado, até Chico Buarque e no tropismo sociológico de tantos mais), na música popular, no cinema (Glauber Rocha, Cacá Diegues, Walter Salles Jr.), na crônica como a esportiva (ele prefaciou O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues, que sempre falava na “saúde de vaca premiada” dos jogadores brasileiros). Também se veem na mídia e no cotidiano, como quando as pessoas se gabam da miscigenação (Carlinhos Brown: “O brasileiro nasce com uns pontos a mais no QI por ser uma mistura de raças”). Mesmo a cordialidade que Sergio Buarque criticou como impedimento à necessária separação entre público e privado, três anos depois de Casa Grande e Senzala, foi, sob um ângulo freyriano, distorcida para um elogio da doçura nacional.

É claro que Freyre não é o inventor da noção do brasileiro como um povo diferente, especial, que se distingue do europeu por agir com o coração. “A civilização é triste”, lemos ainda hoje de economistas sérios. E gente como José Sarney, o oligarca, garante: “A maior contribuição do Brasil ao mundo é a alegria.” Oswald de Andrade, que andou às turras com Freyre nos anos 30, no conflito entre modernismo paulista e regionalismo nordestino, disse as mesmas coisas em seus manifestos, influenciado pelos conceitos de Freud como repressão. Esse espírito faz parte, claro, do período da formação moderna da nacionalidade, que seria sintetizado institucionalmente no governo getulista, quando samba e futebol viraram os símbolos ufanistas que são até agora. Mas Freyre foi quem fez a base conceitual de tudo isso.

É claro que tal formação foi um contraponto fundamental ao que se dizia até a República Velha, em ensaios como os de Paulo Prado e Oliveira Lima, cujo teor era que a mistura enfraquecia a raça brasileira e lhe dava melancolia. Como ser contra mestiçagem, alegria, etc.? Mas já está na hora de ultrapassar a idade mítica da identidade nacional e testar com rigor a veracidade dessa auto-imagem. Freyre, por sinal, como todo autor muito citado e pouco lido, é distorcido à beça. Sempre fez questão de dizer que não era a favor do “dionisíaco”, como um Zé Celso, mas de uma combinação entre ele e o “apolíneo”, ou seja, entre a cultura intuitiva e informal com a racional e dedutiva – o que até o fez cometer o equívoco de apoiar a ditadura militar de 1964. De qualquer modo, sua herança se tornou nociva principalmente porque coloca como vetor principal da cultura o perfil racial. E confundi-lo com os costumes, as artes e os esportes nunca fez bem a lugar nenhum.

Exemplo disso tudo é a visão que ainda parece dominante sobre Euclides da Cunha, essa visão “telúrica” (como diria Zé Celso, que adaptou Os Sertões para o teatro), que quer fazer dele um “advogado dos sertanejos” pura e simplesmente, pondo de canto sua visão determinista de progresso, suas contradições, seus dilemas em relação ao Brasil. Euclides continuou social-darwinista até a morte, acreditando que deveria haver um Darwin para a espécie humana e um Newton para a ordem moral. Mesmo no póstumo Às Margens da História, por exemplo, ele elogia o bandeirante Raposo Tavares por ir desbravando o país e escorraçando os índios. No entanto, Freyre fez dele um precursor de sua obra, como se Os Sertões se resumisse a um encantamento pelo “Brasil profundo”, sertanejo, rural. Não.

Como nota Marco Antonio Villa na antologia Os Sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos (Editora Unesp), organizada por José Leonardo do Nascimento (que analisa a força das “frases-síntese” do autor), considerá-lo apenas como “livro de denúncia”, quase como se Euclides tivesse se convertido aos conselheiristas, não dá. Villa descreve as diferenças entre as reportagens de Euclides em Canudos, para o Estado, e o texto final de Os Sertões, cinco anos mais tarde. Simpatias com figuras do Exército desaparecem, comoções com a dor dos sertanejos aumentam; nesse período em que redige o livro, a desilusão com a República brasileira o faz adotar um tom mais grave. Mas Euclides continua a dividir o mundo em raças “fortes” e “fracas”. Que Freyre tente atenuar esse problema não deixa de ser absurdo.

Cada lado do espectro ideológico, na verdade, segue tentando “roubar” Euclides para si. Ele não era nem o panfletário quase bíblico que defende a cultura autóctone, nem o positivista empedernido que confunde progresso e autoridade. Se mostrou que a suposta civilização pode ser mais bárbara que os tais bárbaros, jamais deixou de vê-los assim, como “bárbaros”, embora fortes e adaptados a seu meio. Euclides era mais contraditório, complexo – uma mescla intensa e genial de idealista e fatalista. Numa das frases coligidas em outro lançamento, Migalhas de Euclides da Cunha (editora Migalhas), organizado por Miguel Matos, ele diz com todas as letras: “Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora.” Aqui dá uma volta em Freyre, a quem a civilização também parecia apavorar, não por seus racismos e suas guerras, mas por suas exigências. Mistura racial não assegura vocação democrática. Democracia precisa ser construída duramente contra privilégios senhoriais ".

Daniel Piza

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