sábado, 23 de fevereiro de 2013

ALMIR GOMES: O MÉDICO-ESCRITOR-POETA



Ensaio

POR LÚCIO ALCÂNTARA

" Um painel amazônico "



" Almir Gomes de Castro médico, íntimo dos ossos frequenta as letras com assídua obstinação "
" Nessa trajetória literária, não distinguiu gênero. Foi dos haikais ao conto, da poesia ao romance, com merecido reconhecimento de mestres da literatura."



" Almir Gomes de Castro dedica-se à literatura em três gêneros: a poesia, o conto e o romance. Em tudo, a terra e a
tradição falam mais alto, uma vez que dela, de seu cotidiano, o autor extrai personagens ou imagens poéticas "


FOTO: THIAGO GASPAR

" Não se trata, pois, de um estreante, mas de autor experimentado agora a nos brindar com um novo romance, "Kuriquiã", na linha de antecedentes que casam realidade e ficção, estilo que marca sua produção literária. O olho atento do observador associado a imaginação fértil que cria a fábula além dos fatos. Dono de alentada fortuna crítica que atesta a qualidade de sua obra constituída por mais de dez livros publicados, iniciou sua caminhada literária pela poesia o que, segundo escreveu José Alcides Pinto na orelha do livro de contos "O Ceará sempre escutará" (Gráfica e Editora Pouchain Ramos, 2006) teve a vantagem de testar "sua sensibilidade e vocação artística". Como poeta transitou da forma clássica dos sonetos românticos e dos alexandrinos para o modernismo dos versos livres. Versátil, enveredou pela prosa de ficção, contos e romances, gênero no qual veio a se fixar com notável êxito. Tornou-se no curso da carreira um escritor maduro cuja evolução estilística situou-o no campo do regionalismo onde faz companhia a consagrados mestres. Assim o afirmam críticos que se debruçaram sobre sua obra, com destaque para "O Último Berro"(Edições Livro Técnico, 2003), romance considerado como uma inovação na ficção nacional.

As fontes

Almir Gomes de Castro impregnou sua escrita de suas vivências no interior e da experiência adquirida como médico, o que sugere em alguns textos traços autobiográficos. Essa é a porção realista de seu estilo. A denúncia social, a preocupação com os desvalidos, o retrato da injustiça palmilhando as veredas do êxodo. A par desse aspecto, o autor lança mão na elaboração de sua obra do fantástico, do sobrenatural, tecendo uma composição feita de realismo e magia. O resultado é um texto inspirado na realidade, influenciada pela fantasia, fruto da imaginação e criatividade do autor. Essa é, de modo geral, a marca do seu estilo. (Texto I)

A estética

"Kuriquiã", sua produção mais recente, continua a explorar o veio do realismo fantástico. E o que traz de novo esse amplo painel amazônico dentro do qual se movem os personagens na tentativa de domar a selva sem que cheguem de fato a compreendê-la? Primeiro, o cenário. O palco do enredo foi deslocado do sertão adusto do nordeste, onde vegeta a caatinga raquítica, para a luxúria da Amazônia, colosso feito de água e verde. O cearense transplantado para lá come e fala como se daqui não houvesse saído. Os pés na selva, a cabeça no sertão. (Texto II)

Elementos da ação

Segundo, o tom épico do livro, a saga dos colonizadores, o embate com a floresta e a cultura autóctone alimentada de lendas e misticismo. Desfilam nessa sequência de investidas colonizadoras sobre a região ciclos econômicos malogrados feitos de apogeus e fracassos, tal o da borracha, dos ícones arquitetônicos de Manaus e da tragédia dos muitos mortos anônimos esquecidos em covas rasas no seio da selva, enganados pela esperança da fortuna, punidos pela natureza, vítimas de exploradores desumanos. Pulsa vida nas palavras do autor nas épicas individuais e coletivas que ressumam do livro, narradas ou mencionadas de leve, a conquista do Acre pelo exército improvisado de Plácido de Castro, os soldados da borracha que alimentaram com a vida a máquina de guerra dos aliados, a metáfora dos dormentes feitos de carne humana da estrada de ferro Madeira-Mamoré, a corrida do ouro que transformou Serra Pelada em um formigueiro humano movido pela cobiça e a utopia trágica dos jovens de Aragarças que um dia sonharam mudar o mundo. Dessas incursões exploratórias predadoras vinga-se a floresta de forma perceptível com as inundações e a dinâmica das doenças antigas e novas. Enquanto isso os cientistas alertam o mundo para os efeitos climáticos nocivos dessa destruição diante de um ceticismo paralítico dos povos e seus líderes. A experiência sugere que o mote sociológico é a integração e não a conquista. A adaptação ao meio, a absorção da rica cultura local que faça do povoamento da região um destino e não uma aventura.

FIQUE POR DENTRO
Um breve retrato do artista

O ficcionista, ensaísta e poeta Jorge Tufic, tecendo juízos sobre a obra de Almir Gomes de Castro, afirma que este "explode, como as galáxias, a cada livro que escreve". Ressalta, ainda, a sua sede pela escritura, uma vez que esta, percorrendo inúmeros gêneros, parece brotar de algo imperioso. Entrega-se, constantemente, ao fluxo da memória, além de emprestar aos fatos uma dinâmica moderna. Para Andréa Larissa, Almir Gomes de Castro realiza um "estudo aprofundado e detalhado da realidade", ressaltando que, a partir disso, ele apresenta a capacidade de recriar épocas, levando o leitor a vivenciar, com intensidade, o cotidiano que afeta as personagens. Assim, nele a terra e a tradição falam mais alto; e tudo se reveste de um intenso realismo.

Trechos
TEXTO I

O mar mastigava ondas. Os libaneses singravam águas mediterrâneas rumo ao Ocidente. Muita história deste povo criador do alfabeto. Nós, descendentes diretos desses viajantes de entanho, guardamos no sangue o som dos poemas. Lemos e relemos anotações de fundo do baú dos tios paternos. Estevam, cristão devoto; José, pregador da palavra de Cristo. Ambos com a doença de vender e comprar o que quer que seja. O mercantilismo impregnado até na alma. Não poderiam ficar parados, precisavam desvendar outros mundos. (p. 25)

TEXTO II

A mata estreitava. Entrava o barco pelo Rio Negro, Solimões, fugindo de vez em quando por igarapés de muita água, seguindo a orientação de seus guias. Um tucano engolia um roedor. Macacos pulavam de galho em galho. Ancoravam próximo a uma caverna. Águas cristalinas convidavam para a descida. Ninguém resistia à tamanha beleza e a um mergulho rejuvenescedor. O índio comunicava-se com gestos. Parecia entender quando perguntavam de quem e por que fugia. Retraía-se sem querer conversa. Trespassou um tambaqui de cinco quilos com sua vara de pesca. Fogueira estalava. Água borbulhava chamando a fome. Aquela terra recebia fenícios três mil anos depois. José vistoriou toda a caverna. Pedra por pedra, sinal por sinal. Ali encontrou inscrições que supostamente provariam a presença de seu povo. (p. 30) "





 

   


             LÚCIO ALCÂNTARA             
                Colaborador*            

 *Da Academia Cearense de Letras







FONTE: DIÁRIO DO NORDESTE
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1235515

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