domingo, 8 de setembro de 2013

" AIRTON MONTE IMORTAL "

" NO DIA 10 DE SETEMBRO do ano passado, Fortaleza perdia um de seus maiores cronistas: Airton Monte. Apaixonado pela cidade, a família e a literatura, o médico e escritor deixou muita saudade e um acervo cheio de inéditos. Alguns textos o Vida & Arte Cultura confia hoje ao leitor. Para amenizar a falta, visitamos também as lembranças" 
 
 
FOTO: DEIVYSON TEIXEIRA
" A surrada Olivetti do cronista e o epitáfio que deixou preparado para ser inscrito no vento "
 
 
" Não fosse a mudança, tudo estaria como antes na casa. Da varanda ventilada, cheia de rosas, com a mesa de vidro onde Airton se colocava a escrever no começo da manhã, vendo o povo passar, ao quintal que abriga a mesa antiga, de uma madeira puída, onde ele também se postava escritor. Para onde se olhasse, haveria papel e caneta, à espera de qualquer arroubo criativo do cronista, contista, poeta, roteirista, dramaturgo.

Fofoqueiro, antes de tudo. Airton gostava de ouvir as histórias com todas as suas expressões para depois refazê-las em exclamações. Noveleiro também, aproveitava as tramas e os nomes dos personagens para rechear seu inventário de narrativas e brincadeiras. Tudo desembocava em literatura.

O papel pautado do caderno de dez matérias comprado pela esposa, dona Sônia, ou o guardanapo do bar em que parasse e até o receituário usado no consultório médico: qualquer lugar era propício, tudo podia virar história.

Mas a casa está cheia de caixas guardando os objetos sem, no entanto, conseguir ocultar as lembranças. O Solar dos Monte já não será o da rua José Barcelos, 155. A preocupação que o atormentou nos últimos anos, o medo de ver a família sem um teto para chamar de seu, foi dissipada. O seguro de vida que ele fez agora garante o lugar de repouso, como queria, aos que tanto amou: Sônia e os filhos, Bárbara e Pablo.

Nenhuma casa, porém, é grande o suficiente para comportar a saudade.

Só um lugar permanece tal como um ano atrás, quando Airton se despediu da vida, aos 63 anos, olhando para a mulher que mais amou, a filha Bárbara. Continua igual o quarto em que ele escolheu passar os últimos dias, onde guardava os escapulários do seu “Chiquinho”, o santo pelo qual o ateu fajuto tinha devoção. O mesmo quarto que ouvia as conversas dele com a esposa varando a madrugada. Uma intimidade construída em 47 anos de relação. Um amor nascido entre dois primos, que se conheciam desde a infância, e foi construído graças à esperteza do rapaz. Embora tímido, ele soube ganhar as atenções de Sônia, então interessada por outro.

Ganhou a moça na graça, na inteligência, no jeito de menino. “Ele dizia que era meu filho mais velho, aí eu completava: e o mais trabalhoso também”, conta dona Sônia, que começou a namorar Airton aos 15 anos, ele com 16. Bonita como ela só, se hoje não esboça um sorriso mais vívido, como os que exibia ao lado dele, é porque a ausência de Airton ainda maltrata. “Meu coração está de bengala”, diz.

Mas basta procurar na memória uma ou outra lembrança engraçada das tantas que ele deixou e o sorriso se ilumina de novo. Airton queria a mulher sempre bonita, alegre. Determinou até que usasse vestido vermelho e batom escuro na despedida – mas dessa brincadeira do marido ela não pôde participar.

Nas outras todas, lá estava. Quando Airton saía com a família para algum restaurante e brincava de adivinhar o que os vizinhos de mesa conversavam, pedia que ela fosse ao banheiro e passasse bem perto para ouvir o que diziam. Queria confirmar a situação que ele suspeitava se desenrolar e já ia até reproduzindo os diálogos para os filhos, que morriam de rir. “Ó, aquele casal ali está brigando. A mulher tá reclamando isso, isso e isso. Aí o cara vai responder assim...”, Bárbara encena, aos risos. “Aí eu passava bem devagarzinho pra ouvir. E não é que às vezes eles estavam mesmo falando o que ele dizia?”, emenda dona Sônia.
 Heranças do poeta

A gaiatice tão conhecida de Airton é um traço da família, uma de suas heranças. Bárbara conta que, além do pai, ela, o irmão – mesmo muito tímido –, e a mãe sempre fizeram troça uns com os outros. “Ele adorava arengar, deixava qualquer um doido”, diz a curadora da obra de Airton Monte, para quem ele deixou os livros dos quais nutria profundo ciúme e a responsabilidade de cuidar de seu acervo. Para Pablo, os discos.

Nas visitas ao arquivo do pai, as estantes lotadas de livros, Bárbara sente como se remexesse um tesouro. Aqui e ali encontra obras inéditas, mas também faz pequenos achados que mais parecem afagos do pai. Já encontrou bilhetes escritos por ela e o irmão, ainda crianças, que ele guardou a vida inteira; textos dedicados a eles; poemas que desvendam a alma de Airton Monte e o amor que ele tinha por sua Sônia Maria. Há também ensaios, peças teatrais, crônicas, contos, poemas.

Desses, há o primeiro livro de Airton. Não O Grande Pânico (1979), como todos supõem, mas o livro Poesias de Airton Monte, título escrito de caneta azul, com uma foto 3x4 do autor, nos seus 17 anos, acompanhando o volume. Uma reunião de poemas que ele entregava a Sônia, desde o começo do namoro. Um presente dela, no natal de 1969. As poesias datilografadas ganharam encadernação, índice, apresentação.

Mas ele se recusava a publicar os tais poemas de adolescência, julgava ruins, exigente que era quando se tratava de literatura. Leitor desde os 4 anos de idade, foi estimulado pelo pai, balconista de livraria. Adorava Nelson Rodrigues, dizia que Fernando Pessoa só podia ser um tarado para escrever tão bem, admirava Rubem Braga, que uma vez o telefonou e ele nada soube dizer além de “obrigado”.

Escritor desses sem preocupação com prêmios e títulos, gostava mesmo era da companhia dos amigos e de viver a cidade, no fim da vida desejou entrar para a Academia Cearense de Letras. Calhou de a última eleição eleger outro, no dia mesmo em que Airton se foi. Uma decepção da qual a família o preservou, até porque não é preciso título para fazê-lo um imortal das letras."


FONTE: JORNAL O POVO
 http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/09/07/noticiasjornalvidaearte,3124474/airton-monte-imortal.shtml

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